23/12/2008


CARTA AO VIZINHO CHINÊS


Deve ser gêmea, senão a mesma,
é a de ontem, é igual e se disfarça
numa metade escurecida
a lua
que neste momento ronda
como eterna sentinela
a trazer fosca iluminação
sobre a caixa de fósforos,
sobre os palitos
que conhecerão em chamas - um sol.

(Existe o inverso sentido,
o sol iluminando a lua,
e a lua iluminando os pedaços de sol
guardados nos fósforos).

Deve ser sem dúvida a mesma,
a lua que amanhã olhará
um desconhecido
que neste momento mora na China
e faz uma vigília qualquer
sobre o arroz.
(Temos a mesma lua,
somos cúmplices destas iluminações).

Já chega a ser mais do que gêmea,
é exatamente a mesma,
quero simplificar
a lua que volta
amadurecida,
e não estou mais só apenas
olhando a lua,
e seria como se ela me olhasse
e de outras existências
ela, a lua, me permitisse conhecimentos.

Assim sendo
ó desconhecido chinês
não sei o teu exato tráfego
entre esta lua,
e há uma grave denúncia,
uma sonora, uma metamorfoseada denúncia
quando a lua
vem nos dizer que apenas passa
sempre por uma frágil rua
que chamam mundo,
uma única rua descalça
que é a mesma
que existe na Grande Muralha,
que é a mesma
por onde o carteiro
chega a minha porta.
A lua nos faz um só acontecimento.

Assim sendo,
ó já visto chinês,
peço que também
coloques a tua mão sobre a nossa lua.

Tenho olhado esta lua,
venho pensando nos grãos de arroz,
e no instante em que morreu
a tua última imperatriz
de pequenos pés.

Tenho pensado numa embarcação
cheia de muitos,
muitos
antepassados olhando a lua enquanto era uma noite
uma espessa noite,
até que todos eles reunidos
pudessem vir me trazer apenas dois olhos
para olhar esta lua.

Tenho visto tuas porcelanas,
tenho visto algo do azul
desbotando
e sendo devorado por dragões.

Sei,
deves gostar de pingue-pongue
e o mar, o mar
é uma grande mesa quando sobre as águas
passa a lua, - uma bolinha
sobre as águas
e que vai
e volta,
e que vai
e volta.
Estamos assim dentro de um jogo.

Por fim já vizinho,
conhecidíssimo
e amigo chinês -
o jogo é muito antigo.

Olhes a tua lua,
olhes a minha lua,
jogues para cá,
jogarei daqui a tua lua.

Fico aqui pensando em milenares dragões
que querem devorar
o mar,
o arroz,
e a nossa única lua.

[Luís Sérgio dos Santos]

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